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Um poema de Pedro Nava

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The death bed, Edvard Munch

The death bed, Edvard Munch

 

O DEFUNTO

  

 

Quando morto estiver meu corpo,
Evitem os inúteis disfarces,
Os disfarces com que os vivos,
Só por piedade consigo,
Procuram apagar no Morto
O grande castigo da Morte.

Não quero caixão de verniz
Nem os ramalhetes distintos,
Os superfinos candelabros
E as discretas decorações.

Quero a morte com mau-gosto!

Deem-me coroas de pano.
Deem-me as flores de roxo pano,
Angustiosas flores de pano,
Enormes coroas maciças,
Como enormes salva-vidas,
Com fitas negras pendentes.

E descubram bem minha cara:
Que a vejam bem os amigos.
Que não a esqueçam os amigos.
Que ela ponha nos seus espíritos
A incerteza, o pavor, o pasmo.
E a cada um leve bem nítida
A ideia da própria morte.

Descubram bem esta cara!

Descubram bem estas mãos.
Não se esqueçam destas mãos!
Meus amigos, olhem as mãos!
Onde andaram, que fizeram,
Em que sexos demoraram
Seus sabidos quirodáctilos?

Foram nelas esboçados
Todos os gestos malditos:
Até os furtos fracassados
E interrompidos assassinatos.

— Meus amigos! olhem as mãos
Que mentiram às vossas mãos…
Não se esqueçam! Elas fugiram
Da suprema purificação
Dos possíveis suicídios.

— Meus amigos, olhem as mãos!
As minhas e as vossas mãos!

Descubram bem minhas mãos!

Descubram todo o meu corpo.
Exibam todo o meu corpo,
E até mesmo do meu corpo
As partes excomungadas,
As sujas partes sem perdão.

— Meus amigos, olhem as partes…
Fujam das partes,
Das punitivas, malditas partes …

E, eu quero a morte nua e crua,
Terrífica e habitual,
Com o seu velório habitual.

— Ah! o seu velório habitual!

Não me envolvam em lençol:
A franciscana humildade
Bem sabeis que não se casa
Com meu amor da Carne,
Com meu apego ao Mundo.

E quero ir de casimira:
De jaquetão com debrum,
Calça listrada, plastron…
E os mais altos colarinhos.

Deem-me um terno de Ministro
Ou roupa nova de noivo …
E assim Solene e sinistro,
Quero ser um tal defunto,
Um morto tão acabado,
Tão aflitivo e pungente,
Que sua lembrança envenene
O que resta aos amigos
De vida sem minha vida.

— Meus, amigos, lembrem de mim.
Se não de mim, deste morto,
Deste pobre terrível morto
Que vai se deitar para sempre
Calçando sapatos novos!
Que se vai como se vão

Os penetras escorraçados,
As prostitutas recusadas,
Os amantes despedidos,
Como os que saem enxotados
E tornariam sem brio
A qualquer gesto de chamada.

Meus amigos, tenham pena,
Senão do morto, ao menos
Dos dois sapatos do morto!
Dos seus incríveis, patéticos
Sapatos pretos de verniz.
Olhem bem estes sapatos,
E olhai os vossos também.
 

 

Este poema de Pedro Nava foi publicado pela primeira vez em 1946, no livro Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos, com seleção e organização de Manuel Bandeira. Sobre O defunto, o poeta chileno Pablo Neruda disse que era o maior poema da literatura brasileira.

 

 

Written by passeipostei

20/06/2011 at 23:08

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escultura

 

 

de pé
nua
sem drapeados
sem reservas                                                                                          
sem idade

sem realces
fundo escuro
desmorro

nenhum som
a não ser
o do martelo
batendo
no cinzel

enculpo-me
desculpo-me
esculpo-me

 

Gerusa Leal

 

 

Written by passeipostei

10/06/2011 at 15:06

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Um poema de Anne Sexton

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When man enters woman

 

 

When man
enters woman,
like the surf biting the shore,
again and again,
and the woman opens her mouth in pleasure
and her teeth gleam
like the alphabet,
Logos appears milking a star,
and the man
inside of woman
ties a knot
so that they will
never again be separate
and the woman
climbs into a flower
and swallows its stem
and Logos appears
and unleashed their rivers.

This man,
this woman
with their double hunger,
have tried to reach through
the curtain of God
and briefly they have,
though God
in His perversity
unties the knot.

 

 

Quando o homem entra na mulher

 

 

Quando o homem
entra na mulher,
como a onda batendo contra a costa,
de novo e de novo,
e a mulher abre a boca com prazer
e os seus dentes brilham
como o alfabeto,
Logos aparece ordenhando uma estrela,
e o homem
dentro da mulher
ata um nó
de modo que nunca
possam separar-se de novo
e a mulher
sobe a uma flor
e engole o seu caule
e Logos aparece
e solta seus rios.

Este homem,
esta mulher,
com a sua dupla fome,
tentaram atravessar
a cortina de Deus,
e por um breve instante conseguem,
ainda que Deus
na Sua perversidade
desate o nó.

 

 

Versão para o português: Raimundo de Moraes

Anne Sexton (1928 – 1974)

 

Anne Sexton iniciou carreira como modelo. Dedicou-se à poesia por conselhos médicos: em 1955, depois de seu segundo internamento psiquiátrico, foi incentivada a escrever pelo seu terapeuta Martin Theodore Orne. A partir daí, começou a publicar e atrair a atenção da crítica literária americana. Ganhou o Prêmio Pulitzer em 1967 com o seu livro Live or Die. Suicidou-se em 1974 na garagem de sua casa, por intoxicação de monóxido de carbono.

 

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09/06/2011 at 20:31

Um cheiro de sândalo e jasmim: o homoerotismo na poesia de Abu Nuwas e Ibrahim Ibn Sahl

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Traduções de Paulo Azevedo Chaves

 

Com vinho, dizendo que é vinho, enche-me a taça,
Pois beber furtivamente não há quem me faça.
Pobre e maldito é o tempo em que sóbrio fico,
Mas quando trôpego pelo vinho torno-me rico.
Não escondas por temor o nome do bem-amado;
O prazer verdadeiro nunca deve ser ocultado.

Ho! a cup and fill it up, and tell me it is wine,
For never will I drink in shade if I can drink in shine.
Curst and poor is every hour that sober I must go,
But rich am I whene’er I stagger to and fro.
Speak, for shame, the loved one’s name, let vain disguises fall;
Good for naught are pleasures hid behind a curtain-wall.

 

Abu Nuwas (c.750-810) nasceu em Ahwaz, Pérsia, filho de soldado sírio e uma mulher persa. Educou-se em Basra e Cufa, então centros culturais muito importantes do Oriente Muçulmano e viveu depois longamente na corte do califa Harun al-Rashid (785-809), que se tornou seu amigo. Em Bagdad, Abu Nuwas veio a ser considerado um dos maiores – senão o maior – do seu tempo e um dos grandes da poesia árabe clássica, a que trouxe, dentro do seu formalismo característico, uma desenvoltura extraordinária, um tom de anacreôntica graciosidade e leveza que não recua ante o mais licencioso e é o espelho de uma cultura que herdou, ao contrário da Europa cristã, o hedonismo e a desinibição do mundo greco-latino. Abu Nuwas aparece frequentemente na coletânea As Mil e Uma Noites, quase sempre em situações relacionadas ao amor entre iguais. 

O poema acima consta do livro Anthology of Islamic Literature (Penguin Books, editada por James Kritzeck, 1964) e sua versão em inglês é assinada por R.A. Nicholson.   Na versão em português consta no livro Trinta Poemas e Dez Desenhos de Amor Viril, Pool Editorial, 1984.

 

Muitas vezes um belo rapaz de lábios rubros
me pergunta sorrindo: – qual a tua religião?
Eu lhe respondo: em teu amor eu encontro minha fé,
meu paraíso, meu Deus e minha eternidade.

 

Abu Ishaq Ibrahim Ibn Sahl al-Isra’ili al-Ishbili (1212-1251), também conhecido como Ibn Sahl de Sevilha, é considerado um dos grandes poetas mouros da Andaluzia no século 13. Ele era um judeu convertido ao Islã, na época em que aquela região da atual Espanha estava sob domínio muçulmano. Morreu tragicamente num naufrágio a serviço do governador de Ceuta Abu Ali Ibn Khallas. Sobre a morte do poeta, Ibn Khallas fez o seguinte comentário (belíssima metáfora, por sinal): a pérola retornou ao mar. Poema traduzido da versão inglesa de autoria de Winston Leyland. Na versão em português consta no livro Nus, com seleção, tradução e notas de Paulo Azevedo Chaves e fotografias de Roberto Portella. Editora Comunicarte, 1991.

 

 

Written by passeipostei

08/06/2011 at 23:53

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Traduzir-se – Ferreira Gullar

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Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?

 

 

 

Nara Leão interpretando o poema musicado por Fagner.

Written by passeipostei

02/06/2011 at 23:13

Um poema de Aymmar Rodriguéz

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Written by passeipostei

29/05/2011 at 21:36

Um poema de Roberto Piva

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 Eu vi os anjos de Sodoma escalando
um monte até o céu
E suas asas destruídas pelo fogo
abanavam o ar da tarde
Eu vi os anjos de Sodoma semeando
prodígios para a criação não
perder o ritmo de harpas
Eu vi os anjos de Sodoma lambendo
as feridas dos que morreram sem
alarde, dos suplicantes, dos suicidas
e dos jovens mortos
Eu vi os anjos de Sodoma crescendo
com o fogo e de suas bocas saltavam
medusas cegas
Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e
violentos aniquilando os mercadores,
roubando o sono das virgens,
criando palavras turbulentas
Eu vi os anjos de Sodoma inventando a
loucura e o arrependimento de Deus

 
 
 
 

Roberto Piva (1937-2010)

Written by passeipostei

23/05/2011 at 16:51

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Trecho de Romanceiro da Inconfidência – Cecília Meireles

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ROMANCE  XIV  OU  DA CHICA  DA  SILVA
 

 

Que andor se atavia
naquela varanda?
É a Chica da Silva:
é a Chica-que-manda!

Cara cor da noite
olhos cor de estrela.
Vem gente de longe
para conhecê-la.

(Por baixo da cabeleira,
tinha a cabeça rapada
e até dizem que era feia.)

Vestida de tisso,
de raso e de holanda
– é a Chica da Silva:
– é a Chica-que-manda!

Escravas, mordomos
seguem, como um rio,
a dona do dono
do Serro do Frio.

(Doze negras em redor,
– como as horas, nos relógios.
Ela, no meio, era o sol!)

Um rio que, altiva,
dirige e comanda
a Chica da Silva,
a Chica-que-manda.

Esplendem as pedras
por todos os lados:
são flechas em selvas
de leões marchetados.

(Diamantes eram, sem jaça,
por mais que muitos quisessem
dizer que eram pedras falsas.)

Mil luzeiros chispam,
à flexão mais branda
da Chica da Silva
da Chica-que-manda!

E curvam-se, humildes,
fidalgos farfantes,
à luz dessa incrível
festa de diamantes.

(Olhava para os reinóis
e chamava-os “marotinhos”!
Que viu desprezo maior?)

Gira a noite gira,
dourada ciranda
da Chica da Silva,
da Chica-que-manda!

E em tanque de assombro
veleja o navio
da dona do dono
do Serro do Frio.

(Dez homens o tripulavam,
para que a negra entendesse
como andam barcos nas águas.)

Aonde o leva a brisa
sobre a vela panda?
– A Chica da Silva:
à Chica-que-manda.

A Vênus que afaga,
soberba e risonha
as luzentes vagas
do Jequitinhonha.

(À Rainha de Sabá,
num vinhedo de diamantes
poder-se-ia comparar.)

Nem Santa Ifigênia,
toda em festa acesa,
brilha mais que a negra,
na sua riqueza.

Contemplai, branquinhas,
na sua varanda,
a Chica da Silva,
a Chica-que-manda!

(Coisa igual nunca se viu.
Dom João Quinto, rei famoso,
não teve mulher assim!)

 
 
 
 
 

Cecília Meireles (1901-1964)

Written by passeipostei

22/05/2011 at 12:25

Romance sonâmbulo – Garcia Lorca

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Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra pela cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Por sob a lua gitana,
as coisas estão mirando-a
e ela não pode mirá-las.Verde que te quero verde.
Grandes estrelas de escarcha
nascem com o peixe de sombra
que rasga o caminho da alva.
A figueira raspa o vento
a lixá-lo com as ramas,
e o monte, gato selvagem,
eriça as piteiras ásperas.

Mas quem virá? E por onde?…
Ela fica na varanda,
verde carne, tranças verdes,
ela sonha na água amarga.
— Compadre, dou meu cavalo
em troca de sua casa,
o arreio por seu espelho,
a faca por sua manta.
Compadre, venho sangrando
desde as passagens de Cabra.
— Se pudesse, meu mocinho,
esse negócio eu fechava.
No entanto eu já não sou eu,
nem a casa é minha casa.
— Compadre, quero morrer
com decência, em minha cama.
De ferro, se for possível,
e com lençóis de cambraia.
Não vês que enorme ferida
vai de meu peito à garganta?
— Trezentas rosas morenas
traz tua camisa branca.
Ressuma teu sangue e cheira
em redor de tua faixa.
No entanto eu já não sou eu,
nem a casa é minha casa.
— Que eu possa subir ao menos
até às altas varandas.
Que eu possa subir! que o possa
até às verdes varandas.
As balaustradas da lua
por onde retumba a água.

Já sobem os dois compadres
até às altas varandas.
Deixando um rastro de sangue.
Deixando um rastro de lágrimas.
Tremiam pelos telhados
pequenos faróis de lata.
Mil pandeiros de cristal
feriam a madrugada.

Verde que te quero verde,
verde vento, verdes ramas.
Os dois compadres subiram.
O vasto vento deixava
na boca um gosto esquisito
de menta, fel e alfavaca.
— Que é dela, compadre, dize-me
que é de tua filha amarga?
— Quantas vezes te esperou!
Quantas vezes te esperara,
rosto fresco, negras tranças,
aqui na verde varanda!

Sobre a face da cisterna
balançava-se a gitana.
Verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Ponta gelada de lua
sustenta-a por cima da água.
A noite se fez tão íntima
como uma pequena praça.
Lá fora, à porta, golpeando,
guardas-civis na cachaça.
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar.
E o cavalo na montanha.

Tradução de  Afonso Felix de Sousa.
 
 
 
 

Garcia Lorca (1898-1936)

Written by passeipostei

20/05/2011 at 15:22