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Mamãezinha querida

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Entre Medeia e a Virgem Maria. Desde que os homens saíram das cavernas e iniciaram o processo civilizatório, as fêmeas do Homo sapiens vivem um dilema histórico: serem boas esposas e mães perfeitas. Por não entenderem nada de biologia, parir naquela época era algo sobrenatural – o que favoreceu o surgimento e a manutenção do matriarcado durante séculos. Com o advento do cristianismo se consolida o culto mariano. Um hímen intacto torna-se um atestado de bom caráter e pureza d’alma.

A princesa Medeia, filha do rei Eetes, é ainda hoje um dos maiores mitos de crueldade materna. Sua história foi recontada através de uma peça de Eurípedes, encenada pela primeira vez em 431 a.C. Mas comentam que na versão original da lenda grega Medeia não matou os filhos: eles foram assassinados em Corinto por uma turba raivosa. Os cidadãos daquela cidade teriam “convencido” Eurípedes a escrever uma nova versão, para não manchar o nome da cidade com o crime de infanticídio. E assim permanece até os dias atuais a versão teatral que sabemos: uma mulher abandonada pelo marido e que se vinga nos filhos para punir o seu amado infiel.

No outro extremo está a imagem celestial de Maria de Nazaré, mãe de Jesus. Maria é um personagem que ganhou forma com o passar do tempo, como uma escultura ou paisagem de uma tela. A Igreja a proclamou eternamente virgem no Concílio de Éfeso, em 431 d.C.; foi proclamada sem pecado em 1854, e em 1950 decidiram que ela não morreu: subiu aos céus “em corpo e alma” tal como Jesus.

O culto mariano não é um dogma de libertação e igualdade de direitos entre homens e mulheres. Como o próprio cristianismo, é um ícone de submissão e culpa. Mulher ideal teria que ser virgem antes do casamento e ser uma boa genitora depois. Ser mãe ainda hoje é visto como uma bênção divina, a mulher parideira é admirada e muito mais bem aceita do que aquela que opta por não ter filhos. Mas procriar é apenas um dos destinos possíveis de uma mulher, mesmo que ela ache que só poderá ser feliz sendo mãe.

Porém tantos úteros abençoados não se afinam muitas vezes com cabeças desequilibradas. Essa coisa de mães que jogam recém-nascidos no lixo ou os abandonam à própria sina não é algo recente. Medeia não foi uma precursora. Na Antiga Grécia as mães estavam autorizadas pelo Estado a matar ou abandonar nas florestas crianças nascidas com algum “defeito” (cegueira, má-formação congênita etc). Na Idade Média, por volta do ano 1198, o papa Inocêncio III resolveu criar “A Roda” – utilizada depois nos conventos e orfanatos mundo a fora. De maneira anônima, as mulheres que não queriam ou não podiam manter seus filhos, podiam deixá-los num compartimento do lado de fora do orfanato. Faziam rodar o engenho, o bebê entrava e seus problemas saíam. O motivo da criação da Roda: o papa ficou assustado com o número de pequenos cadáveres boiando no rio Tibre, em Roma.

Saindo do item assassinato e indo para o de espancamento, um dos exemplos mais famosos é o da atriz Joan Crawford. Por ser uma das maiores estrelas de Hollywood, suas crueldades ganharam fama internacional. Batia nos filhos (todos adotados), amarrava os coitados nas camas, fazia tortura psicológica. A sua filha Christina – a mais traumatizada da prole – escreveu um livro (Mommie Dearest – Mamãezinha Querida) que depois virou filme (1981) estrelado por Faye Dunaway. Não ganhou nenhum Oscar, mas se houvesse prêmio para mães malvadas, na certa ganharia o Beliscão de Ouro.

A sociedade deveria abolir o modelo coercitivo de que uma mulher para ser “completa” precisa ter filhos. Simplesmente porque nem todas têm capacidade para ser mãe – a maternidade é algo que começa no momento da concepção e abrange vários processos: cuidar, educar, fazer dos filhos seres independentes, prontos para a vida.

Muitas tragédias e frustrações seriam evitadas se as mulheres incapacitadas para amar suas crias desistissem de ser mães. É um problema que envolve tudo: do sistema econômico aos preceitos religiosos. No Brasil, uma adolescente pobre que engravida ganha um certo status de independência, passaporte para a idade adulta. Mesmo que no futuro ela obrigue os filhos a pedir esmola nos semáforos.

Outras percebem tarde demais a falta de vocação para a maternidade. Li uma notícia que na Inglaterra, uma mulher levou os seus três filhos à escola e ao retornar deixou um bilhete na casa de sua mãe, dizendo que ia “tirar férias” em Malta, uma ilha do Mediterrâneo. E tchauzinho. (Detalhe: pagou a viagem com o dinheiro que o governo lhe dava para sustentar os filhos). Ao iniciar as investigações sobre o caso, a polícia descobriu que na casa da criatura não havia luz, gás, nem comida. De tão suja, a casa parecia uma pocilga. Era ali que ela criava as três crianças. Quando retornou a mãe viajante foi condenada a um ano e meio de prisão por crueldade infantil e perdeu a guarda dos filhos. Acho que esta parte ela deve ter gostado.

 

Raimundo de Moraes

Cartaz do filme Mamãezinha querida, estrelado por Faye Dunaway.

Written by passeipostei

05/02/2012 at 13:06