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literatura ou quase

Revendo o esplendor

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catedral

 

 

O gigantesco aeroporto de Brasília é coisa para maratonista. A gente desembarca e anda léguas para pegar as malas. O lugar foi reformado para receber os jogos da Copa de 2014 e as Olimpíadas 2016. Acho que os engenheiros responsáveis pelo novo aeroporto pensaram que todo viajante é atleta. Para quem atravessa o terminal para pegar as malas, seria justo no final receber uma medalhinha de cortesia com as frases “Welcome to Brasília. Não procure entender. Apenas sinta a cidade.”

Estive por aqui duas vezes no século passado quando a capital do país não era a metrópole nervosa de hoje. Dizem que das cidades-satélites – agora transformadas em bairros – para o Plano Piloto desenhado por Oscar Niemeyer, nos horários de maior movimento a pessoa gasta quase duas horas dentro de um carro. Os camelôs também invadiram Brasília. Rapazes e moças saem das tocas à noite e alugam seus corpinhos nas quadras do centro. Igrejas evangélicas em tudo que é canto – até encontrei uma vitrine cheia de óleos milagrosos, oh glória.  Brasília, que não era Brasil, mas sim algo abstrato, agora é.

Clarice Lispector escreveu dois textos comparativos sobre suas idas à capital do país. Uma das idas foi logo que a inauguraram e a outra na década de 1970. A cidade projetada e seus grandes vazios – isso há quase sessenta anos – induziu à Clarice um olhar místico-alucinógeno, personagens extraterrestres e tentativas de descrever a dura poesia em forma de concreto. Na primeira vez que estive aqui – um adolescente atormentado e míope –  escrevi um poema dizendo que, em formato de avião, Brasília quer voar. Mas hoje eu me pergunto: para onde?

Como é final de ano, digamos que oitenta por cento dos que vivem aqui já debandaram. Brasília tem o maior número de funcionários públicos do país por metro quadrado. Em época de recesso o povo some, senão enlouquece. Ou já são loucos por só terem shopping como opção de diversão? Desde a sua inauguração os gestores deixaram o Distrito Federal à margem da agenda cultural do Brasil. Soube que o belo Teatro Nacional está há cinco anos fechado. Não vi projetos de incentivo à cultura popular e quando um show de turnê passa por aqui os ingressos esfaqueiam o bolso, mas quem pode paga sorrindo.

Do décimo quinto andar vejo o cerrado que virou concreto. É como uma alucinação entremeada pelo característico barro vermelho e ipês floridos. Diante da catedral a gente tem vontade de se ajoelhar até mesmo do lado de fora. A fálica antena de TV me faz lembrar que de lá pessoas já se jogaram – de tédio ou de dor? – e hoje as filas para subir ao seu mirante seguem em ritmo ansioso de selfies.

O que Brasília quer de nós? Algumas cidades querem que a gente gaste todo o nosso dinheiro; outras, que a gente se divirta; outras, que a gente apenas se deslumbre e outras querem que aprendamos com alguma perda ou decepção. Mas Brasília não quer nada. Eu, que vivo com a sensibilidade bilhonesimamente espalhada por poros e pontas dedos, sei que Brasília é uma esfinge que pouco se importa com homens e ratos. Ela olha longe para onde ninguém pode ver.

Brasília é Shirley Bassey cantando I get a kick out of you, é um jazz de Shostakovitch, é uma guitarra solitária mas é também música sertaneja que impera absoluta nos ônibus e nos automóveis que cortam a cidade. Querem corroer o concreto tombado com acordes de Marília Mendonça e Bruno e Marrone. Mas espero que a capital federal sobreviva. Que sobreviva à carrocracia, à falta de estacionamento, à falta de um violino na calçada, à falta de um cavalo correndo desembestado na W3 às quatro horas da tarde. Porque todo o transgressivo em Brasília é chapa branca.

Não sei explicar, mas Brasília é debochada. Os ladrões do Congresso estupram tanto nossa dignidade que Brasília tornou-se uma senhora cínica. É como alguém apertando o nosso pescoço alegremente dizendo: não era isso que você queria?

Dividida em imutáveis castas, a cidade criada por JK tem um lado B, porque senão jamais seria uma cidade, mas sim um cenário de ficção. No Setor Sudoeste um ser ingênuo (eufemismo) poderá pagar R$ 74 por uma pequena pizza individual e achar normal, mas num lugar chamado Feira dos Goianos uma sacoleira pode pular de alegria e deixar todos os seus clientes na moda com precinhos camaradas. Vi grafites em Brasília. Vi sujeira. Vi mansões. Vi uma moça com um penteado tão fofo que parecia algodão doce e uma malha azul e branca cobrindo todo o seu corpo parecendo um mar bípede.

O que mais vi? Ah sim. Uma criança no café da manhã perguntando: mamãe, o que é isso? A genitora não sabia explicar, nem eu, meu Deus. Parecia uma paçoca ou um projeto de panqueca. Mas enquanto eu tomava suco de laranja a música ambiente solta uma canção tipo recordar é viver. Sabem há quantas décadas eu não escutava essa música? Bem, acho que Brasília sabia. Foi trilha sonora de uma história que vivi aqui. E que agora, juntando tudo, entrou no pacote tombado pela Unesco.

Depois volto para a varanda do flat, seguro na murada, sigo uma seta invisível. Antes de entrar no avião, rezei: me deem uma resposta. Agora, nesta manhã de Brasília, que se alterna em calor e chuva, a austera dama de rosto de concreto lentamente vira o perfil.  E sussurra algo bem baixinho.

Entendi, Brasília, entendi. Me perfumo de lavanda, recordo cenas de um filme chamado O sonho não acabou, lembro uma certa noite na Asa Norte, pego o elevador de serviço, um funcionário assustado me diz bom dia. Olho para o céu e me vem a frase de Clarice em sua crônica: Brasília é esplendor. Estou assustadíssima.

Eu também estou, minha senhora. Então segure minha mão e vamos juntos nesse labirinto.

 

Raimundo de Moraes

 

 

Foto: interior da Catedral de Brasília. Imagem da internet.

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02/01/2018 at 20:42

irmãzinha

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aymmar rodriguéz

 
 
 
ela sentou ao meu lado no ônibus. me olhou. começou a cantar seus hinos religiosos. eu sei que tenho cara de depravada. então por solidariedade cantei junto com a crente. ela louvando o deus pudico, eu louvando alegremente o meu furico.
 
 

NOAKES_Regina_Chorus

 
 
 

Imagem: Chorus (detalhe), de Regina Noakes.

 

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03/05/2015 at 21:32

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Gula gourmet

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O conto A festa de Babette foi publicado em 1956 e transformado em filme em 1987 – ganhando em seguida o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Foi a segunda adaptação para o cinema de uma obra de Karen Blixen, pseudônimo de Isak Dinesen. Em 1985 Out of Africa foi pra telona sob a direção de Sidney Pollack, estrelado por Meryl Streep, Klaus Maria Bradauer e Robert Redford. A produção – lançada no Brasil com o título Entre dois amores – ganhou sete Oscars, incluindo o de melhor filme e melhor direção.

Não tanto premiado como Out of Africa, A festa de Babette conquistou o coração das plateias no mundo inteiro. O enredo é simples: a fugitiva política Babette sai da França e vai parar numa aldeia da Noruega (no filme, o diretor Gabriel Axel preferiu transferir o enredo para sua terra natal, a Dinamarca). Na aldeia, Babette é acolhida por duas irmãs idosas, tornando-se a discreta cozinheira da casa. E passam-se anos. Até que um dia a cozinheira exilada ganha dez mil francos na loteria. Uma fortuna. Ela muda de vida? Volta para a França? Que nada. Pede permissão às duas velhinhas para realizar um autêntico e refinado jantar francês, com direito a convidar toda a ala geriátrica da aldeia. E este é o ponto alto do filme: a elaboração dos pratos, a degustação, as revelações que vão surgindo.

Ironicamente, a autora de A festa de Babette, Isak Dinesen, não pôde se entregar aos prazeres da mesa em seus últimos anos de vida. Teve que retirar parte do estômago e morreu praticamente subnutrida, pesando apenas trinta e cinco quilos.

 

Raimundo de Moraes

 

 

 
 

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16/03/2015 at 0:37

Mi corazón arde por ti

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                                                            Raimundo de Moraes

 

 

 

 

 

Ainda rutilavam
as últimas cinzas
das Fogueres de San Joan
Descabelada em grandes cachos castanhos
gardênias floradas no pátio
entre os olivais de Valência
a Rainha de Copas desceu do castelo                                                     
Nada a deteve
– suas aias lamentavam cruel desatino
Rasgadas as saias
corvos estavam azuis sob a lua cheia
– a Rainha corria
Escutou os lobos que seguiam a trupe de ciganos
e seu grito também era um uivo:
– Juanitaaaaaa…
Depois disso foram duas bocas e um mesmo desejo
duas rainhas e nenhum Rei de Paus

 

 

 

 

 

 

Poema selecionado no I Concurso Internacional Casa de Espanha, edição 2014.
Imagens: azulejos valencianos, séc. XVIII.

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18/01/2015 at 19:06

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João-Silvério-Trevisan

São tantas as maneiras de ser exilado. Sempre que o teu mundo de dentro não coincide com o grande mundo de fora, está criada a condição de estrangeiro e, por extensão, de exilado.

 

Trecho de Ana em Veneza, de João Silvério Trevisan.

 
 

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24/08/2014 at 17:36

Só sei que nada sei

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Anton-Tchekhov

Já está na hora de as pessoas que escrevem, e principalmente os artistas, compenetrarem-se de que neste mundo não se compreende nada, como outrora reconheceu Sócrates e como Voltaire reconhecia. A turba acha que compreende tudo e que sabe tudo; e quanto mais estúpida ela é, mais amplo lhe parece seu horizonte. Se um artista em quem a multidão acredita tomar a decisão tomar a decisão de declarar de que ele não compreende nada do que vê, só isso já constituirá um grande saber no domínio do pensamento e um grande passo à frente.

 

Anton Tchékhov – trecho de carta para Aleksei Suvórin. Do livro Sem trama e sem final (99 conselhos de escrita). Tradução de Homero Freitas de Andrade. Ed. Martins Fontes.

 
 

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06/07/2014 at 16:58

Os juros de uma dívida

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Cansada pelos rudes trabalhos do dia, Eréndira não teve ânimo para despir-se e se atirou na cama. Pouco depois, o vento de sua desgraça meteu no quarto como uma matilha de cães e derrubou o candelabro contra as cortinas. Ao amanhecer, quando afinal o vento acabou, começaram a cair umas gotas grossas e espaçadas de chuva, que apagaram as últimas brasas e endureceram as cinzas fumegantes da mansão. (…) Quando a avó se convenceu de que muita pouca coisa ficara intacta entre os escombros, olhou a neta com pena sincera. – Minha pobre pequena – suspirou. – Você não terá vida bastante para me pagar este prejuízo.

Assim Gabriel Garcia Márquez anuncia o trágico destino de uma pobre adolescente que é forçada pela avó a peregrinar de povoado em povoado, de deserto em deserto, vendendo seu corpo a quem estiver disposto a se deitar com ela por vinte centavos. O conto – como alguns consideram, novela curta – A incrível e triste história da cândida Eréndira e da sua avó desalmada foi originalmente escrito como roteiro de cinema, mas acabou sendo publicado em 1978 com outras seis narrativas. Em 1983 o brasileiro Ruy Guerra transpôs pras telas a história de Eréndira, convidando sua esposa na época Cláudia Ohana para fazer o principal e a grega Irene Pappás (em excelente interpretação) para viver a avó cafetina. Mas Eréndira já tinha sido mencionada bem antes por Garcia Márquez, no seu livro Cem anos de solidão, numa fala de Aureliano Buendía. Essa, aliás, é uma das características do escritor colombiano, que costumava cruzar personagens e histórias em livros publicados em períodos diversos.

O filme foi realizado numa co-produção entre Alemanha, México e Portugal e teve  indicação de melhor direção no Festival de Cannes de 1984. Aqui no passeipostei, uma das cenas iniciais, quando o presente e o futuro de Eréndira são transformados em cinzas.

 
 

Raimundo de Moraes

 
 

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25/06/2014 at 23:24

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24/06/2014 at 20:35

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Coelhinho da Páscoa, o que trazes pra mim?

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Raimundo de Moraes

 

 

 

 

 

Betina e Ramiro eram católicos apostólicos romanos convictos e praticantes, até se abstinham de comer carne vermelha na Sexta-feira Santa.
– Veja, Betina, este panfleto. Que vergonha! Oferecem ovos de Páscoa de todos os tipos e preços e esquecem o verdadeiro sentido da data!
– É mesmo, meu amor. Antigamente havia mais respeito com a Quaresma e com o Nosso Senhor.
Os dois também estavam preocupados com o filho, Ramiro Jr. O casal purgava o inferno na terra através dessa criatura sempre criada com amor e carinho. Apesar desses cuidados, com quatro anos de idade Ramiro Jr. já tinha sido expulso de dois colégios, e nem fora iniciado na alfabetização.
Nunca quis chupeta, com um ano deixou de molhar a cama. Aos dois já destruía todos os brinquedos – para ver como funciona, pensavam os pais, que gracinha – e uma longa sucessão de babás abandonaram seu posto por motivos de violência: mordidas, arranhões na cara e até um garfo enfiado numa coxa robusta.
Não adiantava castigos, conversas, palmadas na bunda.
– Ramiro, meu bem, em que erramos?
– O que disse a última psicóloga? Ele é hiperativo?
– Não. Ele tem tendências homicidas.
Além disso, em época de Páscoa, Júnior entrava numa agitação febril. Os ovos de chocolate lhe fascinavam de uma maneira que ele chegava a delirar diante de um anúncio ou diante de um teto decorativo de uma loja pronta para vender milhões de ovos e deixar todos felizes – cristãos ou não.
No seu primeiro surto pascoalino Juninho abraçou um ovo gigante nas Lojas Americanas e só saiu de lá depois que Ramiro e Betina passaram – filho e chocolate – na máquina do caixa.
No ano seguinte – já na escolinha – desenhava ovos e ovos e ovos, babava os papéis, arregalava os olhos, a Tia Laura assustada: Juninho, você quer colorir o coelhinho carregando a cestinha? Ele cuspiu na cara da professora: eu quero um ovo! Bem grande!
E a Páscoa se aproximava.
– Ramiro, meu amor, que tal passarmos o feriado da Semana Santa no interior e fugirmos desse consumismo alienante?
– Boa ideia – abraçou-a: será que podemos fazer amor hoje? (eles eram católicos praticantes e usavam a tabelinha. Mas Ramiro nunca contou para a mulher que era estéril, a caxumba já tinha detonado os seus ovos reprodutores. Quem seria o pai de Juninho? Enfim, perdoar é algo divino. E Betina, por sua vez, nunca contou pro marido que usava anticoncepcional desde o nascimento do herdeiro, pois sempre achou que pro papa e pros cardeais pimenta no cu dos outros é refresco. Se viesse outro filho endemoniado ela não aguentaria, cruz credo. Melhor se prevenir).
– Para onde vamos?, perguntou Ramiro Jr. dentro do carro com os pais.
– Uma fazendinha no interior, filhinho. Lá tem cavalinho de verdade pra você andar nele, vai poder pescar com papai, tem outras crianças…
– E meu ovo? E meu ovo? Vou ganhar ovo de Páscoa?
– Lá na fazendinha a gente vê isso.
– Quero meu ovo AGORA!
Juninho teve ataque histérico dentro do carro, berrando, pulando, batendo contra os vidros. Os pais assustadíssimos. As pessoas olhavam.
– Fazendinha não! Fazendinha não! Quero meu ovo!
Bem, entraram num supermercado.
– O que faremos, Betina?
– Temos que ter calma, meu amor. Jesus disse: vinde a mim as criancinhas.
Ramiro empurrava o carrinho com o filho dentro rodeado de ovos de chocolate. Estava numa felicidade delirante: pegue aquele ali amarelo, papai! Tem brinquedo dentro!
– Sim, Juninho.
Retornaram para casa. No jantar Ramiro Jr. não comeu o seu tradicional pacote de batatas fritas com refrigerante – tinha ojeriza a verduras e frutas –engoliu todo o chocolate que pôde. No tapete da sala, embalagens coloridas estavam espalhadas como um segundo chão. As paredes e os sofás melecados de pequenas mãozinhas marrons. Os pais assistiam mudos à televisão.
A primeira diarreia foi às duas da madrugada e sujou o quarto. Vieram outras, até o alvorecer.
No café da manhã, Betina disse: ainda tem ovinho, filho. Quer? Sorrindo, ele se atirou nas sobras com renovado entusiasmo. Depois papai chegou da rua com mais ovos nos braços. Ovos beeeeem grandes! Que delícia!
Sábado de Aleluia. Nunca se cagou tanto naquela casa – oh Senhor, tenha piedade.
– Este aqui veio cheio de jujubas dentro, filho. Coma… isso… coma tudo.
Sucessivos banquetes de chocolates foram servidos e engolidos.
Enfim no domingo trombetas intestinais anunciavam o fim de Ramiro Jr. Em seu desfalecimento e glória, seu pai parecia um Chokito, sua mãe um Sonho Valsa. Já perto da meia-noite, entraram na emergência do hospital com o filho nos braços. Não aconteceu nenhum milagre: desidratado e intoxicado, morreu Juninho.
Foi enterrado vestido como coelhinho da Páscoa, uma fantasia azul e branca cedida por uma vizinha.
– Betina, que coisa horrível! Enterrá-lo vestido assim!
– Mamãe, Juninho adorava a Páscoa. E é uma época de renascimento para todos os cristãos.
– Era um amor de criança. De onde estiver deve estar orando por nós.
– Amém, amém.

 

 

 

Written by passeipostei

14/04/2014 at 20:00

Poemas de Semíramis

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Sevilha
 

Na Igreja de la Anunciación
rezei para qualquer deus
Barroco ou pagão
não importa
Quantas mulheres naqueles bancos
curvaram seus lamentos
e murmuraram
a mesma prece
que lá deixei?

Ensaio de dança na ópera, Edgar Degas

Ensaio de dança na ópera, Edgar Degas


 
 

Leitmotiv
 
 

Me aproximo
das bailarinas de Degas
– azúleas, ocres, cinzas
ninfas
Estão ali eternamente vivas
nas molduras douradas
O que dançam? Debussy? Chopin?
Quero um pas de deux
com a Vida
Mas o macabro
são tuas mãos
que tocam
a mesma
música
 
 
 

        Oferenda
         
         

        Como uma esfinge
        apareço ao dia
        renovada em milênios
        : sem memórias
        na gargalhada em que me vejo
        te esqueço um pouco.
        Arde tua ignorância por não saber
        minhas caras
        se me entendes
        então outra cara tenho
        (Como uma esfinge
        faço-me alicerce em segredos.
        Não sou resposta nem começo)
        Quando a tarde me bate em sol
        derramo minha sombra
        e abranjo teus desejos na escuridão
        E só então sozinha
        quando teu corpo
        é fardo cansado de perguntas
        outra vez em silêncio
        ofereço o peito
        para a naja escura

       

      Dançarinas in blue, Edgar Degas

      Dançarinas in blue, Edgar Degas


       
       

      No bar

       
       
      Desfibrando
      os sais da cerveja morna
      evocamos as mortas idas:
      Auta, Florbela, Gilka
      Me olha:
      eu a próxima morta?
       
       
       
       
       
       
       

      Ode nas sombras
       
       
      El silencio redondo de la noche
      sobre el pentagrama
      del infinito
      Garcia Lorca
       
       

      A noite
      escureceu meus cabelos:
      só a esperança
      abre clarões neste caminho
      Para onde leva-me
      a lua nova
      no céu de ônix?
      Diana escondeu sua face
      mas não eu
      Não tenho medo de amar
      Talvez eu seja hoje
      a mendicante louca
      a perder-se entre o vau e as árvores
      Sem cajado. Sem lume
      E se perco o caminho
      encontrarei outras verdades
      E serei tudo. E serei lua

       

       

      Semíramis é um dos personagens literários criados pelo escritor e jornalista Raimundo de Moraes. Os poemas deste post estão no livro Delivrário de Amor e Morte – opus nefandus, que faz parte do Tríade, composto por mais dois livros num mesmo volume: Atirem a pedra, do heterônimo Aymmar Rodriguéz, e Ciclo, assinado pelo próprio Raimundo. Semíramis – artista plástica, poeta e bruxa wicca – é o heterônimo antagônico de Aymmar, tanto no estilo literário quanto na biografia.

       

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04/03/2014 at 19:35

Linguagem literária: a sua expressão

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Retrato de Laura Battiferri, de Agnolo Bronzino (detalhe).

Retrato de Laura Battiferri, de Agnolo Bronzino (detalhe).

Se a obra literária se distingue da não-literária pelo conteúdo, isto é, por um tipo de conhecimento da realidade e pelo grau elevado deste conhecimento, não deixa de se distinguir também pela forma. Distingue-se da expressão de conhecimento do homem comum, porque sua forma ou linguagem (chamada linguagem literária) é mais “rica” e mais “variada” que a do homem comum, o que é compreensível, pois o artista, isto é, o poeta, o ficcionista, o teatrólogo, sente a existência com mais sensibilidade, vê as coisas com mais acuidade, pensa os problemas da vida com mais inteligência; e quem tem mais o que dizer, diz com mais palavras e em mais complexa expressão. Além disso, o escritor, diferentemente do homem comum, é um criador de expressão, pois tem constantemente de inventar novas expressões para suas intuições. Por outro lado, a forma da obra literária distingue-se também da forma das obras de Ciências Humanas e Naturais: nestas a forma respeita a regras rigorosas, inerente a cada tipo de ciência (daí se falar em linguagem da Matemática, da Lógica, da Química), enquanto que na obra literária as regras de expressão são as criadas pelo próprio artista.
Em conclusão: a obra literária se caracteriza também por sua forma, peculiar a cada tipo de obra e fruto do esforço criativo que a produziu.

 
 

Antônio Soares Amora in Introdução à Teoria da Literatura, Ed. Cultrix. Porém, o autor desse blog tem algumas ressalvas à afirmação “quem tem mais o que dizer, diz com mais palavras e em mais complexa expressão.”

 
 

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03/03/2014 at 19:56

Antes do Baile Verde

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Lygia Fagundes Telles

 

 

 

O rancho azul e branco desfilava com seus passistas vestidos à Luís XV e sua porta-estandarte de peruca prateada em forma de pirâmide, os cachos desabados na testa, a cauda do vestido de cetim arrastando-se enxovalhada pelo asfalto. O negro do bumbo fez uma profunda reverência diante das duas mulheres debruçadas na janela e prosseguiu com seu chapéu de três bicos, fazendo rodar a capa encharcada de suor.
– Ele gostou de você- disse a jovem voltando-se para a mulher que ainda aplaudia. – O cumprimento foi na sua direção, viu que chique?
A preta deu uma risadinha.
– Meu homem é mil vezes mais bonito, pelo menos na minha opinião. E já deve estar chegando, ficou de me pegar às dez na esquina. Se me atraso, ele começa a encher a caveira e pronto, não sai mais nada.
A jovem tomou-a pelo braço e arrastou-a até a mesa-de-cabeceira. O quarto estava resolvido como se um ladrão tivesse passado por ali e despejado caixas e gavetas.
– Estou atrasadíssima, Lu! Essa fantasia é fogo… Tenha paciência, mas você vai me ajudar um pouquinho.
– Mas você ainda não acabou?
Sentando-se na cama, a jovem abriu sobre os joelhos o saiote verde. Usava biquíni e meias rendadas também verdes.
– Acabei o quê, falta pregar tudo isso ainda, olha aí… Fui inventar um raio de pierrete dificílima!
A preta aproximou-se, alisando-se, com as mãos no quimono de seda brilhante. Espetado na carapinha trazia um crisântemo de papel-crepom vermelho. Sentou-se ao lado da moça.
O Raimundo já deve estar chegando, ele fica uma onça se me atraso. A gente vai ver os ranchos, hoje quero ver todos.
– Tem tempo, sossega – atalhou a jovem.Afastou os cabelos que lhe caíam nos olhos. Levantou o abajur que tombou na mesinha. – Não sei como fui me atrasar desse jeito.
– Mas não posso perder o desfile, viu, Tatisa? Tudo, menos perder o desfile!
– E quem está dizendo que você vai perder?
A mulher enfiou o dedo no pote de cola e baixou-o de leve nas lantejoulas do pires. Em seguida, levou o dedo até o saiote e ali deixou as lantejoulas formando uma constelação desordenada. Colheu uma lantejoula que escapara e delicadamente tocou com ela cola. Depositou-a no saiote, fixando-a com pequenos movimentos circulares.
– Mas tiver que pregar as lantejoulas em todo o saiote…
– Já começou a queixação? Achei que dava tempo e agora não posso largar a coisa pela metade, vê se entende! Você ajudando vai num instante, já me pintei, olha aí, que tal minha cara? Você nem disse nada, sua bruxa! Hein?… Que tal?
Ficou bonito, Tatisa. Com o cabelo assim verde você está parecendo uma alcachofra, tão gozado. Não gosto é desse verde na unha, fica esquisito.
Num movimento brusco, a jovem levantou a cabeça para respirar melhor. Passou o dorso da mão na face afogueada.
– Mas as unhas é que dão a nota, sua tonta. É um baile verde, as fantasias têm que ser verdes, tudo verde. Mas não precisa ficar me olhando, vamos, não pare, pode falar, mas vá trabalhando. Falta mais da metade, Lu!
– Estou sem óculos, não enxergo direito sem os óculos.
– Não faz mal – disse a jovem, limpando no lençol o excesso de cola que lhe escorria pelo dedo. Vá grudando de qualquer jeito que lá dentro ninguém vai reparar, vai ter gente à beça. O que está me endoidando é este calor, não aguento mais, tenho a impressão de que estou me derretendo, você não sente? Calor bárbaro!
A mulher tentou prender o crisântemo que resvalara para o pescoço. Franziu a testa e baixou o tom de voz.
– Estive lá.
– E daí?
– Ele está morrendo.
Um carro passou na rua, buzinando freneticamente. Alguns meninos puseram-se a cantar aos gritos, o compasso marcado pelas batidas numa panela: A coroa do rei não é de ouro nem de prata…
– Parece que estou num forno – gemeu a jovem dilatando as narinas porejadas de suor. – Se soubesse, teria inventado uma fantasia mais leve.
– Mais leve do que isso? Você está quase nua. Tatisa. Eu ia com a minha havaiana, mas só porque aparece um pedaço da coxa o Raimundo implica. Imagine você então…
Com a ponta da unha, Tatisa colheu uma lantejoula que se enredara na renda da meia. Deixou-a cair na pequena constelação que ia armando na barra do saiote e ficou raspando pensativamente um pingo ressequido de cola que lhe caíra no joelho. Vagava o olhar pelos objetos, sem fixar-se em nenhum. Falou num tom sombrio:
– Você acha, Lu?
– Acha o quê?
– Que ele está morrendo?
– Ah, está sim. Conheço bem isso, já vi um monte de gente morrer, agora já sei como é. Ele não passa desta noite.
– Mas você já se enganou uma vez, lembra? Disse que ele ia morrer, que estava nas últimas… E no dia seguinte ele já pedia leite, radiante.
– Radiante? – espantou-se a empregada. Fechou num muxoxo os lábios pintados de vermelho-violeta. – E depois, eu não disse não senhora que ele ia morrer, eu disse que ele estava ruim, foi o que eu disse. Mas hoje é diferente, Tatisa. Espiei da porta, nem precisei entrar para ver que ele está morrendo.
– Mas quando fui lá ele estava dormindo tão calmo, Lu.
– Aquilo não é sono. É outra coisa.

Afastando bruscamente om saiote aberto nos joelhos, a jovem levantou-se. Foi até a mesa, pegou a garrafa de uísque e procurou um copo em meio da desordem dos frascos e caixas. Achou-o debaixo da esponja de arminho. Sopro o fundo cheio de pó-de-arroz e bebeu em largos goles, apertando os maxilares. Respirou de boca aberta. Dirigiu-se à preta.
– Quer?
– Tomei muita cerveja, se misturo dá ânsia.
A jovem despejou mais uísque no copo.
– Minha pintura não está derretendo? Veja se o verde dos olhos não borrou… Nunca transpirei tanto, sinto o sangue ferver.
– Você está bebendo demais. E nessa correri… Também não sei por que essa invenção de saiote bordado, as lantejoulas vão se desgrudar todas no aperto. E o pior é que não posso caprichar, com o pensamento no Raimundo lá na esquina…
– Você é chata, não Lu? Mil vezes fica repetindo a mesma coisa, taque-taque-taque-taque! esse cara não pode esperar um pouco?
A mulher não respondeu. Ouvia com expressão deliciada a música de um bloco que passava já longíquo. Cantarolou em falsete: Acabou chorando… acabou chorando…
– No outro carnaval entrei num bloco de sujos e me diverti à grande. Meu sapato até desmanchou de tanto que dancei.
– E eu na cama, podre de gripe, lembra? Neste quero me esbaldar.
– E seu pai?
Lentamente a jovem foi limpando no lençol as pontas dos dedos esbranquiçados de cola. Tomou um gole de uísque. Voltou a afundar o dedo no pote.
– Você quer que eu fique aqui chorando, não é isso que você quer? Que que eu cubra a cabeça com cinza e fique de joelhos rezando, não é isso que você está querendo? – Ficou olhando para a ponta do dedo coberto de lantejoulas. Foi deixando no saiote o dedal cintilante. – Que é que eu posso fazer? Não sou Deus, sou? Então? Se ele está pior, que culpa tenho eu?
– Não estou dizendo que você é culpada, Tatisa. Não tenho nada com isso, ele é seu pai, não meu. Faça o que bem entender.
– Mas você começa a dizer que ele está morrendo!
– Pois está mesmo.
– Está nada! Também espiei, ele está dormindo, ninguém morre dormindo daquele jeito.
– Então não está.
A jovem foi até a janela e ofereceu a face ao céu roxo. Na calçada, um bando de meninos brincava com bisnagas de plástico em formato de banana, esguichando água um na cara do outro.
Interromperam a brincadeira para vaiar um homem que passou vestido de mulher, pisando para fora nos sapatos de saltos altíssimos. “Minha lindura, vem comigo, minha lindura!” – gritou o moleque maior, correndo atrás do homem. Ela assistia à cena com indiferença. Puxou com força as meias presas aos elásticos do biquíni.
– Estou transpirando feito um cavalo. Juro que se não tivesse me pintando, me metia agora num chuveiro, besteira a gente se pintar antes.
– E eu não aguento mais de sede- resmungou a empregada, arregaçando as  mangas do quimono. – Ai! uma cerveja bem geladinha . Gosto mesmo é de cerveja, mas o Raimundo prefere cachaça. No ano passado, ele ficou de porre os três dias, fui sozinha no desfile. Tinha um carro que foi o mais bonito de todos, representava um mar. Você precisa ver aquele monte de sereias enroladas em pérolas. Tinha pescador, tinha pirata, tinha polvo, tinha tudo! Bem lá em cima, dentro de uma concha abrindo e fechando, a rainha do mar coberta de joias…
– Você já se enganou uma vez – atalhou a jovem. – Ele não pode estar morrendo, não pode. Também estive lá antes de você, ele estava dormindo tão sossegado. E hoje cedo até me reconheceu, ficou me olhando, me olhando e depois sorriu. Você está bem papai?, perguntei e ele não respondeu mas vi que entendeu perfeitamente o que eu disse.
– Ele se fez de forte, coitado.
– De forte, como?
– Sabe que você tem o seu baile, não quer atrapalhar.
– Ih, como é difícil conversar com gente ignorante – explodiu a jovem, atirando no chão as roupas amontoadas na cama, Revistou os bolsos de uma calça comprida. – Você pegou meu cigarro?
– Tenho minha marca, não preciso dos seus.
– Escuta, Luzinha, escuta – começou ela, ajeitando a flor na carapinha da mulher. – Eu não estou inventando, tenho certeza de que ainda hoje cedo ele me reconheceu. Acho que nessa hora sentiu alguma dor porque uma lágrima foi escorrendo daquele lado paralisado. Nunca vi ele chorar daquele lado, nunca. Chorou só daquele lado, uma lágrima tão escura…
– Ele estava se despedindo.
– Lá vem você de novo, merda! Pare de bancar o corvo, até parece que você quer que seja hoje. Por que tem que repetir isso, por quê?
– Você mesmo pergunta e não quer que eu responda. Não vou mentir, Tatisa.
A jovem espiou debaixo da cama. Puxou um pé de sapato. Agachou-se mais, roçando os cabelos verdes no chão. Levantou-se , olhou em redor. E ajoelhou-se devagarinho diante da preta. Apanhou o pote de cola.
– E se você desse um pulo lá só para ver?
– Mas você quer ou não que eu acabe isto? – a mulher gemeu exasperada, abrindo e fechando os dedos ressequidos de cola.
– O Raimundo tem ódio de esperar, hoje ainda apanho!
A jovem levantou-se. Fungou, andando rápido num andar de bicho na jaula. Chutou o sapato que encontrou no caminho.
– Aquele médico miserável. Tudo culpa daquela bicha. Eu bem disse que não podia ficar com ele aqui em casa, eu disse que não sei tratar de doente, não tenho jeito, não posso! Se você fosse boazinha, você me ajudava, mas você não passa de uma egoísta, uma chata que não quer saber de nada. Sua egoísta!
– Mas Tatisa, ele não é o meu pai, não tenho nada com isso, até que ajudo muito sim senhora, como não? Todos esses meses quem é que tem aguentado o tranco? Não me queixo porque ele é muito bom, coitado. Mas tenha a santa paciência, hoje não! Já estou fazendo demais aqui plantada quando devia estar na rua.
Com um gesto fatigado, a jovem abriu a porta do armário. Olhou-se no espelho. Beliscou a cintura.
– Engordei, Lu.
– Você, gorda? Mas você é só osso, menina. Seu namorado não tem onde pegar. Ou tem?
Ela ensaiou com os quadris um movimento lascivo. Riu. Os olhos animaram-se:
– Lu, Lu, pelo amor de Deus, acabe logo que à meia-noite ele vem me buscar. Mandou fazer um pierrô verde.
-Também já me fantasiei de pierrô. Mas faz tempo.
– Vem num tufão, viu que chique?
– Que é isso?
– É um carro muito bacana, vermelho. Mas não fique aí me olhando, depressa, Lu, você não vê que… – Passou ansiosamente a mão no pescoço. – Lu, Lu por que ele não ficou no hospital?!
Estava tão bem no hospital…
– Hospital de graça é assim mesmo, Tatisa. Eles não podem ficar a vida inteira com um doente que não resolve, tem doente esperando até na calçada.
– Há meses que venho pensando nesse baile. Ele viveu sessenta e seis anos. Não podia viver mais um dia?

A preta sacudiu o saiote e examinou-o a uma certa distância. Abriu-o de novo no colo e inclinou-se para o pires de lantejoulas.
– Falta só um pedaço.
– Um dia mais…
– Vem me ajudar, Tatisa, nós duas pregando vai num instante.
Agora ambas trabalhavam num ritmo acelerado, as mãos indo e vindo do pote de cola ao pires e do pires ao saiote, curvo como uma asa verde, pesada de lantejoulas.
– Hoje o Raimundo me mata – recomeçou a mulher, grudando as lantejoulas meio ao acaso. Passou o dorso da mão na testa molhada. Ficou com a mão parada no ar. Você não ouviu?
A jovem demorou para responder.
– O quê?
– Parece que ouvi um gemido.
Ela baixou o olhar.
– Foi na rua.
Inclinaram as cabeças irmanadas sob a luz amarela do abajur.
– Escuta, Lu, se você pudesse ficar hoje, só hoje – começou ela num tom manso. Apressou-se: – Eu te daria meu vestido branco, aquele meu branco, sabe qual é? E também os sapatos, estão novos ainda, você sabe que eles estão novos. Você pode sair amanhã, você pode sair todos os dias, Lu, fica hoje!
A empregada empertigou-se, triunfante.
– Custou, Tatisa, custou. Desde o começo eu já estava esperando. Ah, mas hoje nem que me matasse eu ficava, hoje não. – O crisântemo caiu enquanto ela sacudia a cabeça. Prendeu-o com um grampo que abriu entre os dentes. – Perder esse desfile? Nunca! Já fiz muito – acrescentou sacudindo o saiote. – Pronto, pode vestir. Está um serviço porco mas ninguém vai reparar.
– Eu podia te dar o casaco azul – murmurou a jovem, limpando os dedos no lençol.
– Nem que fosse para ficar com meu pai eu ficava, ouviu isso, Tatisa? Nem com meu pai, hoje não.
Levantando-se de um salto, a moça foi até a garrafa e bebeu de olhos fechados mais alguns goles. Vestiu o saiote.
– Brrrr! Esse uísque é uma bomba – resmungou, aproximando-se do espelho. – Anda, venha aqui me abotoar, não precisa fica aí com essa cara. Sua chata.
A mulher tateou os dedos por entre o tule.
– Não acho os colchetes.
A jovem ficou diante do espelho, as pernas abertas, a cabeça levantada. Olhou para a mulher através do espelho:
– Morrendo coisa nenhuma, Lu. Você estava sem os óculos quando entrou no quarto, não estava? Então não viu direito, ele estava dormindo.
– Pode ser que me enganasse mesmo.
– Claro que se enganou. Ele estava dormindo.
A mulher franziu a testa, enxugando na manga do quimono o suor do queixo. Repetiu como um eco:
– Estava dormindo, sim.
– Depressa, Lu, faz uma hora que está com esses colchetes!
– Pronto – disse a outra, baixinho, enquanto recuava até a porta.
– Não precisa mais de mim, não é?
– Espera! – ordenou a moça perfumando-se rapidamente. Retocou os lábios, atirou o pincel ao lado do vidro destapado. – Já estou pronta, vamos descer juntas.
– Tenho que ir, Tatisa!
– Espera, já disse que estou pronta – repetiu, baixando a voz.- Só vou pegar a bolsa…
– Você vai deixar a luz acesa?
– Melhor, não? A casa fica mais alegre assim.
No topo da escada ficaram mais juntas. Olharam na mesma direção: a porta estava fechada. Imóveis como se tivessem sido petrificadas na fuga, as duas mulheres ficaram ouvindo o relógio da sala. Foi a preta quem primeiro se moveu. A voz era um sopro:
– Quer ir dar uma espiada, Tatisa?
– Vá você, Lu…
Trocaram um rápido olhar. Bagas de suor escorriam pelas têmporas verdes da jovem, um suor turvo como o sumo de uma casca de limão. O som prolongado de uma buzina se fragmentou lá fora. Subiu poderoso o som do relógio. Brandamente a empregada desprendeu-se da mão da jovem. Foi descendo a escada na ponta dos pés. Abriu a porta da rua.
– Lu! Lu! – a jovem chamou num sobressalto. Continha-se para não gritar. – Espera aí, já vou indo!
E apoiando-se ao corrimão, colada a ele, desceu precipitadamente. Quando bateu a porta atrás de si, rolaram pela escada algumas lantejoulas verdes na mesma direção, como se quisessem alcançá-la.

 

 

Este conto faz parte do livro que tem o seu mesmo título – Antes do Baile Verde – que na sua primeira edição, em 1970 pela Editora Bloch, reuniu quinze narrativas de Lygia, produzidas entre 1949 e 1969. Posteriormente, na segunda edição, mais cinco contos foram incluídos. Na publicação atual, da Companhia das Letras, a versão da coletânea apresenta dezoito narrativas. Antes do Baile Verde é considerado um dos melhores livros da escritora paulista, e tema constante nos vestibulares de todo o Brasil.

 

 

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24/02/2014 at 19:58

Dois poemas de Frank Bidart

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ESTROFES TERMINANDO COM AS MESMAS DUAS PALAVRAS

 

Primeiro, me senti receoso porque havia entrado
pela porta que dizia Tua Morte.

Nenhuma palavra de valor se
desentranhava de tua morte.

És a ruína cujo braço enlaça a mulher jovem
no bar póstumo, antes de tua morte.

Acima de ti, a grama ainda
está faminta, alimentada por tua morte.

Mata quem matou teu pai, disse tua vida
voltando-se de novo para mim antes de tua morte.

Difícil envelhecer e manter a fome.
Ainda tinhas fome na hora de tua morte.

 

STANZAS ENDING WITH THE SAME TWO WORDS

 

At first I felt shame because I had entered
through the door marked Your Death.

Not a valuable word written
unsteeped in your death.

You are the ruin whose arm encircles the young woman
at the posthumous bar, before your death.

The grass is still hungry
above you, fed by your death.

Kill whatever killed your father, your life
turning to me again said before your death.

Hard to grow old still hungry.
You were still hungry at your death.

 

Prometheus and God, do artista gráfico sérvio Dejano23.

 

 

FOME DO ABSOLUTO


A Terra você sabe é redonda mas parece chata.

Você não pode confiar
nos sentidos.

Você pensa que já viu todo tipo de criatura
porém não

esta criatura.

*

Quando o conheci, sabia que

me havia desmamado de Deus, não
da fome do absoluto. Ó boca

insaciável pronunciando o que é e deve
permanecer inapreensível —

dizendo Você não é finito. Você não é finito.

 


HUNGER FOR THE ABSOLUTE


Earth you know is round but seems flat.

You can’t trust
your senses.

You thought you had seen every variety of creature
but not

this creature.

*


When I met him, I knew I had

weaned myself from God, not
hunger for the absolute. O unquenched

mouth, tonguing what is and must
remain inapprehensible —

saying You are not finite. You are not finite.

 

 

 

Frank Bidart nasceu na Califórnia em 1939. É professor de inglês no Wellesley College, em Boston. Publicou Golden State, The Sacrifice, Star Dust e Metaphysical Dog. Os dois poemas aqui publicados foram traduzidos por Carlos Machado, que mantém o blog Alguma Poesia.


 
 

Written by passeipostei

08/12/2013 at 17:21

Virar mulher

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R. Mineiro

 

 

 

No carnaval de 1993, me maquiei cedo na frente do espelho. Batom vermelho, blush, rímel, um top básico, uma saia colorida. Nunca me vestira daquela maneira. De alguma forma aquela transgressão me completava.

As exclusividades femininas agora minhas. Um último ajuste nos brincos postiços e a certeza: estava lindo. Silencioso, caminhei para a porta da rua.

Aos treze anos, fui surpreendido por meu pai que me proibiu o travestismo. Passei o sábado de Zé Pereira trancado em casa, assistindo na TV a meus amigos brincando de ser mulher.

Alguns anos antes, acompanhei minha irmã em sua primeira aula de ballet. Fiquei encantado. Os passos, o ritmo, as cores do ambiente. Ainda hoje, posso recordar a música executada na classe. Na volta para casa disse a minha mãe o quanto gostara das bailarinas. No dia seguinte estava matriculado na escolinha de futebol.

Assim, desde novo, ia sendo separado do mundo feminino como se me cortassem, cotidianamente, um cordão umbilical. Por isto, seguia olhando para meu umbigo e enxergando através dele a tatuagem que carregava comigo. No meu ponto de equilíbrio, um rastro feminino.

E de tanto olhar para aquela cicatriz materna, descobri uma menina a crescer dentro de mim. Foi crescendo, crescendo e ameaçou explodir em hérnia. Minhas entranhas querendo sair, num inútil esforço de me virar ao avesso. Meu umbigo enorme, meus pais mandaram tirá-lo. Após a cirurgia, acordei com a dolorosa sensação de minha primeira castração feminina.

Esquisito este desejo de ser mulher. Esta palavra estranha que lembra verbos, correr, bater, beber. Substantivo grávido de sentidos e existência. A sentença: ser mulher, sempre me pareceu redundância.

Na busca desta condição, que também é uma ação, me encontrei em muitos adjetivos e superei outras preposições. Casei-me com uma bailarina e nos engravidamos de uma pequena atrevida. Todos sabem, ou deveriam saber, que é o gameta masculino quem determina o gênero das próximas gerações. O cromossomo XY é a marca genética de nossa máscula ambiguidade.

No nascimento de minha filha, finalmente cumpri a secreta profecia. Aquele pequeno mundo, determinado por meu código contraditório, teve a ventura de ser feminino. E agora, parte de mim vive neste mundo como fêmea. Penso nas alegrias, nas enciclopédias, nas fogueiras e pedras.

Apesar do penar, sinto-me completo, reconstituído com uma parte amputada. Orgulhoso, desfilo com a cria pelas ruas. As pessoas se espantam com um homem cuidando de um neném, ainda mais uma menina. As moças distribuem agradáveis olhares de curiosidade e admiração. Os senhores, em geral, de desconfiança.

Alguém me disse uma vez que a cena de um pai afagando seus filhos representa a esperança no mundo. É difícil ser o sentimento de um mundo sem sentimentos. Mas não procuram facilidades aqueles que arriscam virar mulher.

A paternidade feminina é a transgressão carnavalesca que não foi cumprida, é a sensação do palco para uma bailarina. Depois de trocar a fralda de minha filha, ela me olha com aquela cara séria de quem vai dizer algo de grande importância e balbucia:

– Mamãe!
 
 
 

hermafrodita

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08/12/2013 at 13:18

Publicado em Crônicas

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25/08/2013 at 11:05

As charmosas mordidas de Lestat

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Desde que Drácula foi inventado por Bram Stoker, nunca os vampiros tiveram tão em alta, tanto no cinema como no mercado editorial. São vários autores e diretores explorando o filão, mas da recente safra lançada pelo book marketing, nenhum deles chega ao nível da norte-americana Anne Rice, quem em1976 iniciou a publicação de suas Crônicas vampirescas. Segundo Anne, o primeiro livro, Entrevista com o vampiro – que aqui no Brasil teve sua tradução feita por Clarice Lispector – foi uma tentativa para expurgar a dor que sentia pela morte de sua filha. Em 1985 veio o segundo livro, O vampiro Lestat e em 1994 as personagens de Anne ganharam versão para o cinema. O filme Entrevista com o vampiro, dirigido por Neil Jordan e estrelado por Brad Pitt e Tom Cruise, foi um sucesso mundial. Mas, para quem leu os livros de Anne Rice, sabe que na escalação do elenco aconteceram dois grandes deslizes: Tom Cruise não corresponde bem à imagem do Lestat original e colocaram o adulto e viril Antonio Banderas para viver o belo e etéreo Armand, um vampiro adolescente. Os livros de Anne Rice são ricos em referências históricas e um detalhado trabalho de reconstituição de época, além de uma incrível capacidade de tornar verossímil o que é apenas uma lenda. Depois das Crônicas vampirescas ela escreveu a ótima sequência As bruxas Mayfair e após a morte do marido, o poeta Stan Rice, resolveu dedicar-se a outros temas, como anjos e a biografia de Jesus Cristo. Na sequência abaixo, vemos a vampira-menina Claudia – vivida Kirsten Dunst, na época então com doze anos de idade – que se rebela contra o seu cruel destino: ter sido transformada pelos seus pais Lestat e Louis, e viver com uma alma adulta aprisionada para sempre num corpo de criança.

 

Raimundo de Moraes

 

 

 

 

 

 

“Os livros de papel vão acabar” – Philip Roth

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Imagem

 

Hoje, toda a cultura se encontra à nossa disposição. E isso me preocupa. A cultura literária como conhecemos vai acabar em 20 anos. Ela já está agonizando. Obras de ficção não despertam mais interesse nos jovens, e tenho a impressão de que não são mais lidas. Hoje, a atenção é voltada para o mais novo celular, o mais novo tablet. Daqui a poucas décadas, a relação do público e do escritor com a cultura será muito diferente. Não sei como será, mas os livros em papel vão acabar. Surgirá outro tipo de literatura, com recursos audiovisuais e o que mais inventarem.

 

 

Trecho da entrevista concedida a Luís Antônio Giron e publicada na revista Época em setembro de 2011.

 

Written by passeipostei

08/07/2013 at 19:43

O HOMEM QUE CHAMAVA TERESA

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Italo Calvino

 
 
 
 

Desci da calçada, recuei uns passos, olhando para cima, e, chegando no meio da rua, levei as mãos à boca, como um megafone, e gritei para os últimos andares do prédio:

— Teresa!

A minha sombra se assustou com a lua e se agachou entre meus pés.

Passou alguém. Chamei de novo:

urlo — Teresa!

  A pessoa se aproximou, disse:

  — Se não chamar mais alto não vão escutar. Vamos tentar nós dois. Assim: conto até três, no três gritamos juntos. — E disse: — Um, dois, três.

  E juntos gritamos: — Tereeeesaaa!

  Passou um grupinho de amigos que voltavam do teatro ou do café e viram nós dois chamando. Disseram: — Bom, também podemos ajudar com a nossa voz. — E também foram para o meio da rua e o primeiro dizia um, dois, três e então todos gritavam em coro: — Te-reee-saaa!

  Passou mais um e juntou-se a nós; quinze minutos depois estávamos reunidos num grupo, uns vinte, quase. E de vez em quando chegava mais um.

  Não foi fácil chegarmos a um acordo para gritarmos direito, todos juntos. Havia sempre um que começava antes do “três” ou que demorava demais, mas no final já conseguíamos fazer alguma coisa benfeita. Combinou-se que “Te” seria dito baixo e longo, “re”, agudo e longo, e “sa”, baixo e breve. Funcionou muito bem. Mas, vez por outra, havia uma briga porque alguém desafinava.

  Já começávamos a perder o fôlego quando um de nós, que a julgar pela voz devia ter a cara cheia de sardas, perguntou: — Mas vocês têm certeza de que ela está em casa?

— Eu não — respondi.

— Que confusão — disse um outro. — Esqueceu a chave, não é?

— Na verdade — disse eu —, estou com a chave aqui.

— Então — me perguntaram —, por que não sobe?

— Mas eu nem moro aqui — respondi. — Moro no outro lado da cidade.

— Mas então, desculpe a curiosidade — perguntou circunspecto o sujeito da voz cheia de sardas —, quem é que mora aqui?

— Para falar a verdade, não sei — disse eu.

Houve um certo descontentamento ao redor.

— Mas então se pode saber — perguntou outro com a voz cheia de dentes — por que está chamando Teresa aqui de baixo?

— Por mim — respondi — também podemos chamar outro nome, ou em outro lugar. Não custa nada.

Os outros estavam meio aborrecidos.

— O senhor não teria desejado fazer uma brincadeira conosco? — perguntou o das sardas, desconfiado.

— Eu, hein! — disse, ofendido, e me virei para os outros para pedir que confirmassem minhas boas intenções. Os outros ficaram calados, mostrando não terem captado a insinuação.

Houve um instante de constrangimento.

— Vejamos — disse um deles, bondoso. — Podemos chamar Teresa mais uma vez, e depois vamos para casa.

E chamamos mais uma vez — um, dois, três, Teresa! —, mas já não deu muito certo. Depois nos dispersamos, uns por aqui, outros por ali.

Eu já havia chegado à praça quando tive a impressão de ainda ouvir uma voz que gritava: — Tee-reee-sa!

Alguém deve ter ficado chamando, obstinado.

 
 

Do livro Um general na biblioteca. Imagem: Urlo, de Lara Spadetto.

 
 

Written by passeipostei

03/07/2013 at 0:03

CHAMEGO

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Raimundo de Moraes

 

 

 

Marília!, gritavam lá do jardim.
Zezé enxuga o rosto molhado de suor.
– Acho que Tavinha chegou.
Marília põe no chão a travessa de castanhas-de-caju e sai correndo.
Na sala Sofia já recebia as visitas.
– Os bondes estão cheios demais, Dona Sofia – disse a avó de Otávia. Eu não aguentei tanta agitação e pegamos um carro de aluguel na Encruzilhada.
– Do portão a gente já sente o cheiro da canjica.
– Que nada, minha filha. Zezé nem terminou de ralar as espigas… Deve ser a canjica da vizinha. Este ano não pude ajudar na cozinha. Uma dor vem descendo do ombro até às pontas dos dedos, o braço formigando…
– Ah, eu sei o que é isso, disse a avó. Dor nos ossos deixa a pessoa toda desarrumada por dentro.
Dona Sofia olhou para a visita com certo espanto. Nunca tinha ouvido falar em estar desarrumada por dentro. O que esta criatura quis dizer? Enfim.
As primas riam, conversavam baixinho.
– Mamãe, vou com Tavinha pro meu quarto.
– Vá, minha filha, vá. E a senhora, Dona Celina, quer alguma coisa? Um café, um refresco? Olhe, não se acanhe.

 

Bandeirinhas_Sao__Joao

 

 

– E então? Enfiou a faca?
– Enfiei. Apareceu um C. Eu não conheço nenhum rapaz com a letra C.
– Você já tirou a faca da bananeira, Otávia? Era pra tirar hoje à meia-noite! Assim não funciona! Hoje é véspera do dia de Santo Antonio. O dia mesmo é amanhã.
– E o que é que tem? À meia-noite vou estar aqui, como ia tirar? Você fez a sua?
– Estamos sem bananeira aqui em casa. A única mais perto é a do quintal de Seu Galindo, que não gosta de papai, já brigaram por causa de política. Mas coloquei as agulhas na bacia e as duas se encontraram. Acredita?
– Acho essa adivinhação das agulhas meio fraca. Você nem é noiva nem nada. Por que não coloca os papéis enrolados debaixo do travesseiro?
– Colocar o nome de quem? Pois eu só quero aquela pessoa…
– Aff. Você ainda acredita que Netinho vai aparecer por aqui? Dois anos fora e só escreveu três cartas.
– Ele mandou um cartão liiiindo no Natal. Mamãe achou de muito bom gosto.
Sentou na beira da cama. Apertou as mãos da prima.
– Um segredo. Só para nós duas. Mandei uma foto minha com dedicatória e uma carta convidando ele pro meu aniversário.
Falar em aniversário era uma tristeza para Otávia. Marília nascera no dia de São João e ela no dia de Finados. Sempre fizeram sua festa no dia seguinte, em respeito aos mortos.
– E você acha que ele vem?
– Não sei, não sei. Agora que a guerra acabou, o que ele vai ficar fazendo no Rio Grande do Norte?
– Pode ser que ele tenha encontrado outra moça por lá…
– Lá vem você! Só para me contrariar!
Otávia admirava a fidelidade da prima à memória de Netinho. Só tinham se encontrado algumas vezes nas matinês do Cine Ideal, no Pátio do Terço. Trocaram bilhetes. Quando o namoro parecia começar, o Brasil entra na guerra e lá foi Netinho pra base aérea de Natal.
– O que você vai usar esta noite? Quer ver o meu vestido? – Tavinha começa a remexer nas duas sacolas que trouxera. Ergue um vestido.
– Olhe só. Não é lindo? A costureira disse que copiou igualzinho de um filme, A sombra de uma dúvida. A gola descendo assim é pra disfarçar meu pouco busto.
Aproximou-se do espelho do guarda-roupa segurando o vestido sobre o corpo.
– O que acha, Mari?
Menos eufórica, Marília tenta disfarçar a insegurança que a outra lhe plantou na alma.
– É lindo, Tavinha. Não fiz roupa nova pra Santo Antonio, só pro meu aniversário.
– Mandou fazer? Qual o modelo?
– Já provei, fica pronto terça-feira. É assim: acinturado, saia reta. Posso usar com ou sem casaquinho.
Tirou o vestido das mãos de Tavinha e colocou sobre o seu próprio corpo. As duas ficaram refletidas no espelho.
Oh meu Deus, além de nascer no dia de Finados, não tenho peito nem quadril. Sou uma desgraçada. Marília vai casar logo e eu…
Ajoelhou-se aos pés da cama:
– Ah meu Santo Antonio! Fazei que eu arranje um bom rapaz e faça um bom casamento. Prometo rezar uma novena todo ano em sua graça!
Marília riu.
– Vixe, se acalme. O C vai aparecer hoje.
– Não brinque. Todo mundo olha pra você, tem sempre alguém interessado. Eu não quero acabar vitalina como sua tia Dinorá, segurando vela pros namorados. Deus me livre!
– Que besteira, Tavinha. Você é bonita e jeitosa, vai arranjar um par.
Sentiu-se mal por mentir. A prima magrela lembrava-lhe um bicho, mas não sabia qual. Um ganso?
Otávia se levanta do chão, senta na beira da cama. Olhando para o assoalho diz baixinho:
– Tenho uma pra te contar… daquelas
– O quê? – distraída, Marília ainda observa o efeito do vestido da outra sobre o seu corpo.
– Lembra de Raquel? Aquela loira?
– Aquela que estudou conosco no São José?
– Sim.
– E então?
– Acabou o namoro de um ano.
– Por quê?
Tavinha corre pra cochichar no ouvido da prima:
– O namorado chupou a língua dela num beijo. E ainda tentou alisar as coxas.
Senta na cama de novo, muito séria. Olha a imagem de Marília no espelho e aguarda sua reação. A outra segura com força o vestido sobre o peito, se sente corar.
– Como se faz uma nojeira dessa com uma moça de família, não é, Mari?
– Eu…
Uma vez no carnaval, no corso da rua da Concórdia, um Arlequim perfumado também fez isso com ela. E ela. E ela correspondeu.
Se dissesse a Otávia, o que a prima iria achar? Provavelmente ia contar pra todo mundo.
– Você não acha que Raquel fez certo?
– Acho que sim. Mas um ano de namoro… Tem certeza que só foi esse o motivo?
– Só esse? E você deixaria que algum rapaz fizesse isso com você, hein?
– Não, claro que não.
Dobrou o vestido, colocou sobre uma cadeira. Antes, estava disposta a contar para Otávia que descobrira escondido na estante do pai um livro chamado Nossa Vida Sexual, do Dr. Fritz Khan. Mas agora achou perigoso demais revelar esse segredo. Pensou em até mostrar o livro para ela. As figuras… Numa parte, um homem e uma mulher. Nus. E as ilustrações sobre as doenças venéreas? Se Tavinha as visse talvez vomitasse ou desmaiasse.
Abriu mais as cortinas.
– Finalmente a guerra acabou. Não aguentava mais aqueles blecautes, aqueles panos pretos nas janelas.
– Eu também.
– No dia de São João vou tirar o atrasado. Vamos comemorar o meu aniversário e a paz no mundo.

 

Bandeirinhas_Sao__Joao

 

 

– Sente, Dona Celina, sente.
Sofia a guiava pela cozinha. Zezé ralava as últimas espigas. Ao seu redor, vários cocos partidos e uma camada extensa de palhas e sabugos de milho.
– Tem café pronto na mesa, Dona Sofia.
Celina lembrava bem da cozinheira. Ela fazia o melhor doce de mamão verde que já comera em sua vida. Estalou a língua. Encabulada, disfarçou com um pigarro.
– Quantas colheres de açúcar?
– Duas.
– Pois é. Graças a Deus acabou essa guerra.
– Tantos jovens mortos. Ai, quando penso nas dores das mães e esposas…
– Uma tragédia. Ainda bem que só tive filha mulher.
Celina lembra de Tonico, seu filho mais novo. Amancebou-se com uma radioatriz e foram embora pro Rio de Janeiro. Um escândalo. O pai não viu essa pouca-vergonha, já estava viúva. Se meu Nicanor estivesse vivo, morreria da mesma forma. De vergonha.
Pega a xícara. Fecha os olhos, aspira o aroma.
– E Yolanda, está bem?
– Toda inchada, coitadinha. Primeira gravidez, cheia de medos. Nem sai de casa. A distração dela é bordar o enxoval. – Sofia ergue o braço, abre e fecha a mão, continuamente.
– Incomoda muito?
– Dois dias que estou assim.
– A senhora tá é com o sangue grosso, disse Zezé. Se tomasse a garrafada de Pai Inácio, afinava o sangue.
Levanta do tamborete, bate com força o morim grosso que lhe forrava as pernas roliças. Abre o forno. Uma nuvem doce invade a cozinha. Sofia, que está de costas, não vê mas sente o cheiro.
– Fez quindim, Zezé?
– Fiz. Otávia gosta muito, não é, Dona Celina?
– Sim. (Eu também, eu também. Adoro).
Inclinou um pouco a cabeça para ver Zezé tirando a fornada de bolinhos. Brilhavam como joias.

 

Bandeirinhas_Sao__Joao

 

 

– Vai querer batom? É da Coty – faz um ar sedutor olhando para o espelho da cômoda. A mão parada no ar, segurando o batom e oferecendo à prima.
Tavinha pega, indecisa.
– Não é muito vermelho?
– Ah, Otávia! A cor da moda!
Mesmo assim decide não usar. Não com a avó ali lhe vigiando. E os pais viriam mais tarde para a festa.
Marília ataca no pulso seu minúsculo relógio de ouro. Seis da tarde.
Da sala, Zezé grita: quindim!
As primas saem quase correndo do quarto.
Na mesa, um grande pé-de-moleque salpicado de castanhas, pamonhas amarradas na palha do milho, um engorda-marido em fatias – e aprovado em êxtase por Celina -, queijo manteiga, uma travessa de quindins, um bule de café, outro de leite. Quando vão mexendo suas xícaras Zezé chega com um prato de tapiocas.
– Quem vai conduzir a quadrilha?, Tavinha pergunta engolindo o segundo quindim.
– Seu Juju.
– Juvelino? O do ano passado? Acho ele tão tão
E baixando a voz ainda mais:
– Tão amulherado.
Marília ri.
– Nem notei.
– Pois repare como ele se rebola quando faz a marcação.
-Ôxe.
Próximas ao rádio, sentadas num marquesão, Sofia e Celina escutam as últimas notas da Ave Maria. Fingem rezar em silêncio. Num gesto automático, Sofia ergue o braço, abre e fecha a mão. Fica envergonhada e se benze, como estivesse encerrando uma prece.
– Meu batom saiu, Tavinha?
– Um pouco.

A porta da sala se abre e Félix entra sorridente, gravata torta de um lado e o chapéu torto de outro. Carrega um grande pacote. Fogos para a festa. Sofia vai ao seu encontro, Celina ergue-se, pesada de bolo e café.
– Papai!
– Titio!
Ele deixa o pacote numa cadeira e abraça todas, menos Celina, que é viúva de respeito. Quando está sozinho com Sofia ele chama a sogra da irmã de asa de urubu, por causa do luto fechado.
– E os músicos, papai?
– Vão chegar daqui a pouquinho. Baião sertanejo! Tem um tal de Pedro Setembrino que vira o capeta quando toca o acordeão!
A viúva se benze. As primas riem.

Marília agarra Tavinha pela cintura e saem dançando pela sala:

Penedo vai
Penedo vem
Penedo é terra
Que Deus quer bem

Sofia vai arrastando o marido para o quarto, a roupa que ele vai usar mais tarde já está passada em cima da cama.
Marília continua a rodopiar com Tavinha, emenda outra música.

O chamego dá prazer
O chamego faz sofrer
O chamego às vezes dói
Às vezes não
O chamego às vezes rói
O coração

Celina se abana com uma revista O Cruzeiro, abre um botão da blusa que lhe aperta a garganta. Olha para a mesa com curiosidade – não provara ainda do pé-de-moleque.

 

Bandeirinhas_Sao__Joao

 

 

Às sete horas Félix e Sofia aparecem na sala já arrumados. Ele de chapéu de couro e alpercatas, ela num vestido de flores miúdas, mangas três quartos.
Sempre rodeado por mulheres, Félix se sente uma criatura abençoada. Era único filho homem da família e quis Deus que não gerasse descendência masculina. Mas não se importava. Recebia amor demais das quatro irmãs, da esposa e das filhas.
Como um menino, abre o pacote de fogos: rojões, bombinhas, busca-pés. Marília e Tavinha remexem em tudo.
O dono da casa vai até à cristaleira e bebe dois cálices de licor de jabuticaba.
– Eita licor arretado.
Se anima, chama todo mundo:
– Vamos fazer um brinde a Santo Antonio!
Pequenos cálices se enchem do líquido escuro.
– Ao melhor São João de todos!
– Ao fim da guerra!, disse Marília.
– Que Santo Antonio nos proteja, disse Otávia.
– Eu não bebo.
– O que é isso, Dona Celina? O licor da Filó é coisa dos deuses! Seis meses no fundo do baú, macerando. Pode beber, pode beber.
– Beba, vovó! É uma delícia!
Depois todos vão pra rua. Celina com um cálice numa mão e um rojão na outra.
Os moradores já estão acendendo suas fogueiras. Zezé junta quatro pedras grandes pra fazer um lume e deixar quente o caldeirão de milho cozido. Ao lado, uma cesta com os milhos que serão assados na brasa. Todos os terraços estão enfeitados com bandeirinhas e pequenos balões. O céu lampeja com os primeiros fogos.
Lá na esquina surge uma caminhonete velha cambaleando. Som de sanfonas e triângulos.
– São eles! São eles!
Levam-se cadeiras para as calçadas, meninas de laços nas cabeças correm pra lá e pra cá, meninos jogam traques de massa aos seus pés.
O cálice de Dona Celina fica vazio e seu rojão sobe impávido espalhando-se numa chuva dourada.
Juvelino surge com um lenço vermelho amarrado no pescoço. Batendo palmas, ordena:
– Vão escolhendo seus pares! Vão escolhendo seus pares! Às nove horas vamos começar a quadrilha!
– Marília, você vai dançar com quem?, pergunta nervosa Tavinha, na verdade preocupada com quem ela mesma iria dançar. Olhava disfarçadamente para os rapazes, a maioria já flertando com outras moças, outros reunidos em pequenos grupos de três ou quatro. Quem? Quem?
A prima parece não escutar, dança no meio-fio sozinha, segurando o vestido, acompanhando o ritmo dos sanfoneiros.
Zezé traz uma cadeira para Celina.
– A senhora quer mais um licorzinho?
Félix finca mais tábuas pra segurar a base da fogueira, que tem quase dois metros de altura. Risca um busca-pé na caixa de fósforos e solta pela rua, gargalha, solta outro.
– Félix!, grita Sofia. Cuidado pra não queimar os vestidos das moças!
De dentro da casa 68 os vizinhos saem carregando um balão amarelo e vermelho.
– Vão escolhendo seus pares!
– Com quem, Marília?
– Tira logo o meu milho! Assim vai queimar!
– Pois é, este ano Zezé fez tudo sozinha.
– Sai de perto! Sai de perto! Mandinho vai girar a estrelinha!
– Viu como está formosa a filha de Sofia? Moça feita. E eu vi nascer. Como o tempo passa, meu Deus.
Lentamente um Hudson verde e brilhante surge no início da rua. O motorista buzina várias vezes. Apesar da rua não ser estreita, está difícil driblar tanta criança e tanta fogueira.
– Mari, quem será?
Félix se aproxima e fica ao lado esposa.
O balão começa a subir e a vizinhança aplaude. O carro estaciona embaixo de uma árvore. Descem dois rapazes, cabelos reluzentes de brilhantina.
– É ele.
– Pelo jeito, a carta chegou, Mari.
– Quem são?, pergunta Félix comendo um milho.
– O mais baixo não sei, mas o alto é o rapaz que Marília se corresponde. Estava de serviço na Base Americana de Natal.
– Boa noite a todos.

 

Bandeirinhas_Sao__Joao

 

 

– Já escolheram seus pares? Criançada, essa é uma quadrilha de gente grande. Vamos lá, minha gente! Damas de um lado, cavalheiros de outro!
– Que surpresa, Netinho. Quase desmaiei de susto.
– Você não me convidou?
– Mas meu aniversário é só no dia 24.
– Achou ruim me ver?
Ela se encabula.
– O que é isso. Acho que foi um presente de aniversário antecipado. Quando volta pro Rio Grande do Norte?
– Dei baixa. Vou ficar aqui no Recife trabalhando com papai.
Está diferente, ombros largos, uma fala firme, parece mais seguro, mais…  mais homem.
– Mari! A quadrilha! Você não vai?
– Lembra da minha prima Tavinha?
– Lembro. Tudo bem, Otávia? Por coincidência eu trouxe um primo. Ei, Cadinho!

 

 

DJANIRA

 

 

– Balancê!
Juju se requebra em cima de uma cadeira, segura um megafone improvisado de cartolina e papel crepom, coordena os dançarinos, sorri para os músicos.
– Me escreveu tão pouco.
– Escrevi pouco mas pensei muito. E só em você.
Ela está mais bonita, tão mais cheia de corpo, tão mais… mais feminina.
– Anarriê! Preparar para a grande roda!
Aproveitando que todos se davam as mãos, Félix puxa Sofia para dançar.
– Não vou, homem! Meu braço! Meu braço!
– Se você não for, eu vou dançar com quem?
– Começar a grande roda!
– Cadinho é apelido de que nome?
– Ricardo.
– E o seu? É apelido de que nome?
– Otávia.
– Gosto de Tavinha, disse rindo.
– Também gosto de Cadinho.
A plateia acompanha a evolução da quadrilha, marca o ritmo batendo palmas. Celina bate palmas também e Zezé lhe traz outro cálice de licor de jabuticaba.
– Preparar para a chuva!
Sofia nem sentiu dor quando ergueu os braços.
Não se via mais o balão amarelo e vermelho, juntou-se a tantos outros enfeitando o céu.
– Viva Santo Antonio! Viva São João! Viva São Pedro!
– Marília, você é a moça mais linda desta festa. A mais linda de todas.
Ela ri. Afinal, por que não haveria de acreditar?

 

 

 

A música Chamego (1942), foi o primeiro sucesso de Luiz Gonzaga. Música em parceria com Miguel Lima. Imagem: Festa junina, de Djanira. Conto publicado na coletânea Recife conta o São João, Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2008.

 

 

Written by passeipostei

16/06/2013 at 1:16

Poemas de Nicolas Behr

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          os mais belos versos

          as facas mais afiadas

          as cordas infalíveis

          os tiros certeiros

          os edifícios altos

 

          aliás, o que

          mata mais?

          a falta

          ou o excesso

          de poesia?

 
 
 
 
 
 
 
 

 

KWANDO EU ENLOUQUECER

 

 

no sinal de trânsito,

maltrapilho, entre os pedintes,

papel e caneta na mão:

escrevendo poemas ou

anotando as placas dos carro?

ou rabiscando um desenho

do batman? Ou te oferecendo

um verso louco

em troca de um abraço?

um trocado?

ou apenas fingindo?

 

te reconheço

não me reconheces

 
 
 
 
 
 

POEMA ANTIAJUDA

 
 
 
 

felizes os fracos de espírito

pois estes têm gurus

felizes os que ainda botam fé

no ser humano

felizes os que sabem ler

e têm algo para comer todos os dias

felizes os que criam o inferno

para depois prometer o paraíso

felizes os indiferentes, que não se

comovem com nada e sofrem menos

felizes os que mentem para si mesmos e

acreditam piamente nisso

felizes os infelizes, pois estes são os

verdadeiros iluminados

felizes os que nunca choram e, portanto,

não passam vergonha

felizes os que têm autoconfiança,

autoestima, automóvel

felizes os amigos dos poderosos,

que tudo querem, tudo podem

felizes os que acreditam no amor de Cristo

pois estes não têm mais salvação

felizes os andarilhos, os indecisos, os

confusos, os sem-rumo-na-vida

felizes os que choram com facilidade pois

estes estão sempre reciclando

a água parada dos seus olhos, fazendo

chover nos seus corações

felizes os piegas, os românticos

ultrapassados, os bregas, os que falam de

amor sem medo do ridículo, nem que seja

para faturar uma grana boa naquela

música que vive tocando no rádio e o

povão adora

felizes os que escrevem livros de auto-

ajuda e ganham muito, muito dinheiro, que

é o que realmente importa, que é o que

realmente interessa

 
 
 
 
 
 
 
 

O HORROR, O HORROR         

 

 

 

como, depois de ler nos jornais a notícia

da morte do menino, que foi torturado

com óleo quente para revelar o paradeiro

do pai, escrever um poema?

 

como se olhar no espelho?

como dividir com vocês

todo esse ar que respiramos?

como ficar indiferente

e passar a próxima página?

como sair na rua e desejar

bom dia aos que passam?

 

como continuar vivendo?

 

 

 

 

 

 

 

 

Poemas do livro viver deveria bastar. Edição do autor.

 
 
 
 
 
 

Written by passeipostei

29/05/2013 at 11:54

Publicado em Poemas

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